Era uma
vez uma mulher. Ela havia feito alguma coisa que seu pai desaprovara. Nem ela
mesma sabia do que se tratava e ele a lançara impiedosamente no mar. Os peixes
devoraram sua carne e arrancaram seus olhos e ela ficou lá pobre esqueleto a
rolar com as correntes. Um dia um pescador solitário veio pescar naquela baía.
Seu anzol foi descendo e descendo e ele encontrou algo. Deve ser um grande
peixe, ele pensou. De fato, era tão grande o peso daquilo que ele pensava ser
um peixe que quando mais ele lutava mais aquilo se enredava na linha da rede
que ele lançara ao mar. De repente ele se voltou para olhar a rede e deparou-se
com aquele esqueleto, horrível. Ele a soltou do barco sem reparar que estava
presa e remou, remou, desesperadamente para terra. Ao descer do barco ele
verificou que aquela terrível coisa o acompanhara. Ele corria para casa e o
esqueleto vinha atrás dele, ele gritava e ela o acompanhava, o tempo todo ali,
enredada na vara de pescar. Finalmente ele chegou a seu iglu e atirou-se no
chão, sentindo-se finalmente seguro. Então, ele acendeu sua lamparina de óleo
de baleia e ela estava ali, jogada, amontoada num canto, um calcanhar sobre um
ombro, um joelho preso nas costelas. Ele teve novamente medo, mas algo lhe
aconteceu. Talvez fosse a expressão do esqueleto, se é que podem ter expressão.
Talvez fosse a solidão em seu peito. O certo é que ele teve compaixão daquele
ser e lentamente começou a desenredá-la. E cantava, cantava. Depois ele a
cobriu com ternura. E ela pensava o tempo todo que queria ficar ali, aquecida,
cuidada como jamais o fora. O homem teve sono e dormiu e enquanto dormia uma
lágrima correu de seus olhos, talvez provocada pela compaixão, talvez provocada
pelo coração finalmente pleno. A mulher-esqueleto viu a lágrima e aproximou-se,
e bebeu a lágrima e quanto mais bebia, mais lágrimas saíam. Ela saciou sua sede
de anos. Ela estendeu a mão e retirou de dentro do peito do homem seu coração.
Ela começou a batucar nele pedindo por carne. Tum, Tum, carne, carne ela
cantava em voz alta. E seu corpo miraculosamente se enchia de carne. Quando
finalmente recobrou seu corpo ela devolveu o tambor ao homem e deitou-se a seu
lado. Pela manhã eles acordaram juntos e abraçados e não separaram mais.
Este é um
conto do povo Inuit - tribo do Canadá - de rara beleza que fala do maravilhoso
sentimento da compaixão, compaixão que pode preencher o coração do pescador
solitário e devolver a vida a uma mulher abandonada pelo pai à própria sorte.
Fala da capacidade de olhar para elementos estranhos vindos do inconsciente -
das profundezas do mar - através do amor. Amor pelo que não é tão bonito em
nós, amor pelo que não é tão bonito nos outros.
Associamos
o conto aos florais do grupo da solidão para pessoas que ficam isoladas:
Impatiens, Heather e Water Violet que nos falam, em desarmonia, da incapacidade
de olharmos para os outros com olhos regidos pelo coração. Em Impatiens porque
estamos preocupados demais com a lerdeza do outro, temos pressa, muita pressa,
não teríamos paciência para desenredar o pobre esqueleto! Em Heather porque
queremos apenas falar de nós, porque não queremos ficar sozinhos, porque temos
um buraco dentro de nós mesmos que não sabemos preencher, porque estaríamos
preocupados com nosso próprio sofrimento e jamais com a pobre mulher-esqueleto!
Em Water Violet porque não sabemos nos doar e nos distanciamos das pessoas,
jamais compartilharíamos de nosso coração e de nossas lágrimas com outro ser!
Em harmonia, porém, encontraríamos alguém com quem compartilhar nossa vida, uma
mulher-amante, companheira para sempre. Encontraríamos alguém para que, batendo
em cadência, as mínimas batidas de nosso tambor-coração se transformassem em
louvor ao nosso irmão e a nós mesmos.
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