Mágoas,
guardamos muitas. Lembranças do que sofremos. Mágoas: raivas cozidas no
caldeirão. Acumuladas em baús, retornam e retornam. Atrapalham o presente de
mostrar seus dons. Dizem: remédio para mágoa é o perdão. Como se fácil fosse!
Como se fosse apenas repetir frases, orações longas que invocam o perdão,
plenas de palavras que em absoluto tomam nosso coração.
Perdoar não é
simples. A palavra vem do latim per-donare, que significa algo como
estar disposto a doar, pelo menos é o que diz o Houaiss. Estar disposto a doar,
a oferecer? Oferecer o quê? Oferecer para quem? Oferecer com qual disposição?
Oferecer amor, ternura para quem me feriu pode não ser tarefa fácil. A memória
do que me feriu pode ser mais forte e pode acontecer que eu me sinta a última
das criaturas por não dar a outra face, como pregava Jesus. Afinal, venhamos e
convenhamos: Jesus é Jesus e estamos muito longe de nos comparar a ele. Não há
disposição que supere o que verdadeiramente não posso doar.
Por que não
posso doar? Porque não entrei em contato com minhas emoções, porque não me
permiti olhar para minhas feridas, porque tenho medo de minha raiva acumulada,
porque acredito firmemente que se não per-doar não poderei livrar-me de minhas
mazelas.
Em seu livro “A
Revolta do Corpo”, Alice Miller, psicóloga, especialista no resgate de
sofrimentos passados na infância, coloca que o sentimento de dever não deve ser
confundido com amor verdadeiro e que não sentir o que nos proibimos de sentir
pode nos deixar extremamente doentes.
Perdoar não pode
ser um dever, não pode ser algo que a moral dita, regra de manual. Precisamos,
sim, enfrentar nossas emoções, ouvir o que nosso corpo tem para contar. Se
estou orando há horas no intuito de perdoar meu algoz e morro de dor nas
pernas, se minha cabeça estoura, se aperto meus dentes durante a noite a
ponto de gastá-los algo está saindo errado. O dever não bastou, a moral não
bastou, não bastou a vontade. Talvez tenhamos que começar a pensar que não
somos tão bons como pensávamos, melhor que isso talvez tenhamos que rever nosso
conceito do que é ser bom. Certamente não é fazer um esforço supremo para
esquecer o que ainda nos atormenta. Certamente não é ignorar nossa dor, os
sinais de nosso corpo que são como gritos. Como diz ainda Alice Miller, a nossa
verdade deve ser encarada e nosso corpo impede que não a vejamos.
E se ouvirmos
nosso corpo, podemos perdoar, enfim? Podemos perdoar a nós mesmos, na medida em
que estivermos livres do medo e da culpa, do medo de sermos ruins, de não
sermos pessoas do bem. Podemos perdoar a nós mesmos na medida em que
procurarmos meios de sermos felizes, não obstante o que tenhamos sofrido.
Podemos permitir que a vida nos doe o que de bom tem a oferecer. Talvez
possamos oferecer, assim, algo de bom a quem nos fez mal. Talvez, não. Talvez
nos afastemos deles, não por medo, raiva, culpa, ou o que for e sim por
estarmos bem dentro de nós mesmos, plenos e verdadeiros.
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