Maria Cândida



Maria Cândida era negra, pobre e estava a um passo de ser analfabeta. Trabalhava como empregada doméstica em casa de família de classe média, pois não tinha gabarito para trabalhar em casas onde pessoas tivessem poder aquisitivo melhor. Era pé de boi, boa para uma faxina em regra, mas inapta para lidar com cristais, móveis finos, ou roupas que precisassem de cuidados especiais. Falava muito pouco, era de uma casmurrice amena e, completamente avessa a homens. Não se iludam, não lhe agradavam as mulheres, também, mas no que diz respeito a relacionamento com pessoas do sexo oposto, preferia ficar afastada disso.

Eu a conheci na Padaria do bairro, gostei daquela moça que nunca sorria, mas que tinha vivos olhos muito negros e um andar gingado que me lembrava navio prestes a adernar. Ela não sorria, mas eu que sempre sorri muito a brindava com meu humor toda manhã e lhe dizia meus bons dias, saltitantemente. À princípio ela me olhava como se eu fosse meio lesada, e devia parecer que eu era mesmo, mas com o tempo e, minha insistência, começou a responder meus bons dias e, para minha alegria, um dia me sorriu meio de lado, quando eu comentei algo que ela achou engraçado. Começamos a voltar para casa juntas, ela trabalhava a um quarteirão de minha casa. Aos poucos contou-me que não tinha família, que os pais haviam morrido e que viera trabalhar na Zona Norte, por indicação de uma vizinha- antes morava em Itaquera! Perguntei se não tinha namorado e ela me respondeu um Deus me Livre retumbante. Disse que homens só davam trabalho e que ela não precisava deles. Mais tarde, depois de muitas idas e vindas me contou que a mãe havia se matado para criar três filhos, dos quais dois haviam morrido, por conta de ter sido abandonada pelo marido que tinha amantes à mancheia. Sobrara ela, a mãe morrera e o pai, também, mas se estivesse vivo nem queria vê-lo, nunca.
E assim íamos nós e nossa amizade meio esquisita - ela não aceitava de jeito nenhum tomar café comigo em minha casa e deixava bem claro que gostava de mim, mas que eu estava mais para patroa que para empregada.

Um dia, achei-a mais feliz que de costume. Contou-me que arranjara namorado, que o cara era bem legal e que ia dançar com ele no sábado à noite. Fiquei muito feliz por ela.
O namoro foi de vento em popa. Ela me apresentou o gajo e, confesso, que não gostei dele. Tipo de homem que avalia as mulheres como se fossem frangos nos espetos, mas estava tão feliz a Maria Cândida.

Rezei de coração para que fosse feliz e que eu estivesse enganada. Passa dia, vai dia, comecei a notar que minha amiguinha estava triste. Perguntei o motivo, disse que me contaria depois. Preocupei-me. Toca a campainha de casa. É Cândida. Queria falar comigo em particular. Tomamos então o famigerado café, sozinhas, na cozinha. Lembro-me que fazia um frio danado em Sampa, daquele frio do qual gosto muito, A cozinha estava amena, o café era bom e havia bolo que minha avó havia feito na véspera. Demorou para que ela falasse e, de repente, começou a chorar, um choro dolorido, do qual me lembro até hoje, passados muitos anos. De supetão me disse que estava grávida. Procurara o cara e ele lhe dissera que o filho deveria ser sabe-se lá de quem.

Candinha era virgem quando o conheceu, nem queria se envolver com homens, mas acreditou no amor, descuidou-se e agora tinha que tomar uma terrível decisão. Não podia ter a criança, tinha um dinheiro guardado e ia fazer um aborto. Precisava de companhia e me escolhera. Escolhera, por que eu era sua única amiga e ela confiava em mim. A patroa nunca que poderia saber. Ela ficaria depois da intervenção na casa de uma outra empregada doméstica pelo menos no fim de semana, quando teria folga.

Emudeci, não sabia o que dizer. Diria o quê: para ter o filho? Para sustentá-lo com o quê? Diria que estava tirando uma vida? Diria que ela não deveria ter se descuidado? Diria o quê?

Apenas lhe pedi que pensasse com cuidado. Apenas lhe disse que fosse qual fosse sua decisão, estaria do lado dela, embora tivesse apenas três anos a mais que ela e não pudesse lhe oferecer nada além de meus ouvidos, meu ombro amigo e minha companhia.
Percebi que não mudaria de ideia, mas ainda assim insisti para que pensasse melhor. Pensou e decidiu, minha amiga: faria o aborto. Escolhera um médico razoável, em uma clínica escondida no cafundó do judas. Cobrava caro o tal do médico, mas menos do que cobraria alguém que trabalhasse em uma "clínica melhor".

Aceitei acompanhá-la desde que pudesse ver antes onde estava se metendo. Era uma casa comum, bastante limpa, aparentemente. Apresentei-me como alguém que precisasse do serviço ali feito e pedi para ver as instalações, já que precisava saber se era de confiança o local. Mostraram-me tudo, sala limpa, maca, roupa de cama aparentemente esterilizada. Disseram que era rápida a intervenção, que as moças ficavam em observação por metade do dia e, se não houvesse problemas, iriam embora. Quis ver o médico, mas estava ocupado em seu mister de "fazer anjinhos". A enfermeira, que tinha diploma na parede, eu vi de relance entrando na sala e, me pareceu quase tão velha como Matusalém.
Saí de lá deprimida. Havia na sala de espera muitas mulheres e fiquei imaginando como aquilo era triste, e se poderia ser perigoso a despeito da higiene parecer adequada e do homem que fazia os abortos ser médico.

Conversei com Cândida, tentei convencê-la a pensar em solução melhor. Ela respondeu me chamando de Dona, coisa que não costumava fazer, que ganhava menos que um salário mínimo, morava com a patroa, mal podia se sustentar, não tinha estudo e além de tudo não se sentia capaz de amar a criança que cresceria dentro dela. Uma tristeza. Disse que se eu não fosse, iria sozinha, pois a empregada que lhe oferecera a casa não tinha coragem de ir.

No dia aprazado, saímos eu e Maria Cândida para que ela fizesse o aborto, não contei nada em casa, minha mãe não concordaria. Foi um dos dias mais terríveis de minha vida. Fiquei lá, sentada, rezando para todos os santos já existentes, permitissem que tudo desse certo. Fiquei principalmente prestando atenção no lamento da moça que passara pelo aborto e estava ainda na outra sala sob efeito da anestesia. Era um lamento impressionante como se o útero reclamasse da ausência do feto. Lamento que nunca mais quero ouvir. Candinha, saiu da cirurgia adormecida e aparentemente bem e, fiquei do seu lado até que acordasse. Chorou muitas vezes enquanto dormia e se debateu muito! Ao acordar o médico a examinou, era também bem velho, com surpreendente carinho e atenção. Eu a levei para casa da moça que lhe ofereceu abrigo e me despedi dela.

Continuamos a nos ver nos anos seguintes, até que ela mudou de emprego, mas nunca mais fomos as mesmas uma com a outra. Algo se quebrou naquela sala, algo se quebrou dentro dela e dentro de mim. Não acredito que seremos punidas, Candinha e eu por isso. Candinha já foi punida, cada uma daquelas mulheres não saiu do aborto sem terem sido afetadas, profundamente. Nunca vou esquecer o lamento daquela mulher e o choro compulsivo de Cândida sobre o efeito da anestesia. Nunca vou esquecer o olhar de medo daquelas mulheres naquela sala de espera. Não tenho o direito de julgar, nem de criticar a impossibilidade de cada uma em bancar suas gravidezes. Sim eu fui cúmplice de minha amiga, mas eu faria novamente. Não acredito que há um Deus que puna as pessoas por isso. E sei que a dor do outro está além de nossa compreensão.

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