Dizem que a
vingança é um prato que se come frio. Penso que o ressentimento e a culpa, ao
contrário, são degustados em temperatura muito alta. No caso do ressentimento
pegamos o sentimento e o cozinhamos em fogo lento, fervura sobre fervura e
aquela poção nos engolfa e se torna parte de nós. Quando é a culpa a nossa
companheira, ficamos imbuídos dela e isto cresce e cresce e se transforma em
sarça ardente, queimando em nós, testemunha dos atos que acreditamos falhos ou
que de fato geraram prejuízos a nós mesmos ou a nossos semelhantes.
Quem tem
ressentimento e culpa deve perdoar. Assim dizem. Perdoar seria uma espécie de
água fresca sobre fogo. Afinal de contas o que é perdoar? Confesso que
sempre tive dificuldade de entender em que consiste o ato de perdoar. Quando
recorri ao dicionário fiquei mais confusa ainda. Se o perdão é ato de desculpar
então não vai dar certo para mim. Como assim des-culpar? Quem sou eu para tirar
as culpas de alguém? Que prepotência! Não será essa uma atitude arrogante? Como
se Deuses fôssemos? Cabe a nós des-culpar, retirar por passe de mágica a
responsabilidade cabida somente a seu portador?
Como posso
ofertar desculpas pelos atos cometidos por uma outra pessoa? E como retirar
minhas culpas por atos que cometi, se já foram cometidos? E se são culpas
minhas, minhas culpas, minhas máximas culpas, também não posso retirá-las.
Posso enfrentá-las, lançar-lhes olhares atentos. Buscar não cometer atos que
possam gerá-las.
Se perdão
significa esquecer então o ato de perdoar já está fadado ao malogro. Pois não é
possível esquecer. Há uma memória entranhada em nós. Se nos cortamos o corte se
refaz, mas fica a cicatriz. Não há necessidade de abri-la todos os dias, nem de
remoer sua origem. Mas ela está lá. Faz parte de nossa vida e eu ousaria dizer
que é uma força curadora quando bem utilizada. Então se esquecemos, se deixamos
de lado, se fingimos não ver, não será fuga?
Procurei então o
significado da palavra perdoar, etimologicamente. Perdoar vem de perdonare:
per-donare. Quer dizer: doar com plenitude. Doar o quê? Desculpas?
Esquecimento?
Então nessa
confusão toda de mera criatura, mortal e confusa aconteceu que meu pai veio ao
meu encontro para o ato final de morrer. Nós não nos víamos muito e nem nos
dávamos muito bem. Muitas coisas guardadas na memória, algumas bem ruins. Muito
ressentimento, muita culpa. Uma tarde, sentados lado a lado eu lhe perguntei:
Pai, porque você fez tantas coisas que nos magoaram? Ele parou e pensou. Vi
muita confusão estampada em seu rosto. Então ele me olhou bem nos olhos e
disse: Bem eu não percebi que estava magoando vocês, eu estava muito ocupado
com a minha vida.
Eu esperava
tudo, menos aquela resposta. Esperava desculpas, esperava alienação. Naquele
momento entendi que o que ele queria dizer é que seres humanos cometem erros,
pois estão ocupados vivendo suas vidas. Todos nós estamos. A vida é feita de
muitas coisas e não entramos nela com uma lista do que devemos ou não devemos
fazer. E andamos pelo caminho, muitas vezes, aos trancos e barrancos. Como
podemos. Como é possível. E tropeçamos, e caímos. Na maior parte das vezes
mancamos. Todos padecemos de fragilidades que nos levam a claudicar no sentido
próprio e figurado. Nem sempre temos consciência do quanto ferimos a nós mesmos
e aos outros. Ser humano é lidar com boas e más qualidades o tempo todo.
Perdoar talvez seja compreender isto. Perdoar talvez seja tolerar e ter
compaixão genuína pela nossa condição humana. Perdoar para mim foi aquele
momento em que nos olhos de meu pai eu pude ver o homem e seus defeitos e pude
identificar-me através deles.
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