Bodes expiatórios



Expiatório vem de expiar que quer dizer purificar-se de pecados, libertar-se da danação, da condenação aos infernos.

Nos rituais mais antigos o bode expiatório era uma vítima humana ou um animal oferecido em sacrifício para abrandar a ira da divindade. Embora aparentemente violento e sem sentido, havia uma função em tal procedimento que era a de reconhecer que existiam forças superiores as nossas e aceitar a dor, os instintos e o mal como parte da vida e da psique.

No Levítico da Bíblia o bode expiatório é mencionado ao ser descrita a Festa da Expiação. Dois bodes eram oferecidos ao Deus Jeová. Um, era imolado, o outro era libertado e enviado para o deserto, levando com ele todos os males que afligiam a humanidade. Assim eram mandadas embora as mazelas humanas, as muitas vergonhas, as ações desabonadoras e instalava-se a ilusão de que os que ficavam eram candidatos à perfeição. O mal era, magicamente, eliminado.

O termo bode expiatório é conhecido por todos. Há sempre um na família. É o molequinho acusado de fazer todo tipo de traquinagem. É a garota acusada de ser sensual demais. Muitas vezes é alguém que foi educado para “salvar” os membros da família ou cuja intenção de salvar parece ser bagagem acoplada desde o nascimento. As famílias tendem a eleger alguém: os famosos ovelhas negras. No casamento tendemos a depositar no outro todos os defeitos e acusá-lo de ser responsável pelo que não vai bem no contrato que fizemos, diga-se de passagem, de comum acordo. São as famosas projeções. Enxergamos nos outros aquilo que não queremos ver em nós mesmos.

E estou cá a falar disso, por que motivo? O motivo se chama Isabela. E vem ocupando a mídia incessantemente, desde que foi atirada pela janela. Isabela de cinco anos e que completou seis anos no mês de abril. Isabela, bode expiatório de sua família. Como vem acontecendo com várias crianças. As relações mal entendidas, mal ajambradas entre pais que se casam e descasam e não se entendem e vão se deixando engolfar pelas paixões, geram cólera e loucura. Cólera e loucura que podem se manifestar em todos nós, e são subprodutos do mal, que não está escondido no deserto acobertado pelo bode exilado. Está aqui, em cada um de nós e deve ser olhado, enfrentado, para depois ser contido.

Somos criaturas do bem e do mal, aquilo que nos incomoda não sairá magicamente pela janela, apenas por que o queremos. O trabalho de consciência é doloroso, mas não há como nos afastar dele.

Vivemos em um momento em que o homem acredita ter driblado o mal, como driblou tantas outras doenças. Mas o mal não é uma bola no pé de um Garrincha inspirado. É algo inerente a todos nós. Algo que temos que enfrentar. Para que ele não nos ataque de supetão com sua força extraordinária. Para que não cometamos atrocidades contra crianças indefesas.

Mas não é só Isabela que é o bode expiatório. Seu pai e sua madrasta, também. Pois ao apontá-los com nossos dedos de acusação, pois ao qualificá-los de monstros irrecuperáveis nós os elegemos como nossas latas de lixo. Nós nos indignamos como se nenhum de nós pudesse cometer atos de loucura e de violência. Nós atiramos pedras, pois diante de tanta maldade nos sentimos limpos e purificados. Eles são os bodes expiatórios! Nós os juízes implacáveis e perfeitos.

Se forem os responsáveis, quero que fique bem claro que não estou defendendo este casal. Devem ser punidos, pois existe uma lei para punir, mesmo que não seja tão justa quanto gostaríamos. Porém penso que a pior punição residirá dentro deles mesmos. Não há como viver bem depois de um ato de tal monta. Não há como viver bem escondendo de si mesmo o mal que foi deixado à solta, a quem foi permitido escancarar goela de dentes afiados e ferir de morte uma criança inocente. Serão dignos de compaixão, como é digno de compaixão todo aquele que não está empenhado em perceber que a linha divisória entre bem e mal é frágil como as asas de uma borboleta.

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