Conheci Mia
Couto através do livro “O último voo do flamingo”, recomendado em nossa reunião
de literatura. Eu me encantei. Adorei a linguagem, as novas palavras, as
estórias bem contadas, a referência à mitologia, o humor. Soube que o rapaz
nasceu em Moçambique, na África, sim senhores.
Em um lugarejo
chamado Beira onde brincava com crianças negras, aprendia a falar a língua do
lugar e a escutar histórias. Li coisas sobre ele que me impressionaram.
Entrevistas. Ele diz que sempre abre as portas para a oralidade, e não importa
que isso deixe de ser literatura. Ele diz que o que é importante é interrogar o
que é familiar. Diz que a identidade não existe, pois é uma procura infinita.
No entanto, entrevistas não sãos as gentes, objetos das questões que lhe são
impostas.
Então eu fiquei
curiosa de conhecer pessoalmente o moçambicano. Assim, quando soube que viria a
Ribeirão Preto, nem acreditei. Fiz inscrição para o evento e na quinta-feira,
26 de agosto estava eu, lá. Turma do gargarejo. À espera e à espreita. O homem
corresponderia à obra?
Ele chega, 55
anos mal aparentados, olhos azuis perscrutadores e doces, muito doces, fala
mansa e precisa. Responde às perguntas com muita naturalidade, sem arroubos,
sem frases feitas. É mesmo um contador de estórias. Ele responde, contando
estórias.
Conta que sua
filha é do tipo que tem premonições. Ela, quando soube que ele deveria vir ao
Brasil, lhe dizia todos os dias que ele não deveria vir. Que era muito
perigoso, que havia assaltos, que ele poderia ser assassinado. Todo tipo de
coisa ruim poderia acontecer-lhe. E, ele veio assim mesmo. Porém, os
prognósticos da dileta filha ficaram-lhe guardados na cabeça. E, ao chegar no
aeroporto, começou a ficar preocupado. De repente, viu um cara com um cartaz
com seu nome. E começou a se perguntar se aquilo não era falso, se não estaria
sendo sequestrado. Mesmo assim, foi. Entrou no táxi e continuou com seus
pensamentos lúgubres. O homem do táxi muito gentil lhe ofereceu um recipiente
de metal e lhe perguntou: “Aceita uma balinha”. Nada demais se balinha fosse um
termo comum em Portugal. Mas Mia, contou que bala em Portugal e só de bala de
revólver. Então ele pensou: Bem, vou morrer, mas pelas mãos de um bandido que
pelo menos é muito doce.
Ele contou,
também, que era um menino que não tinha lá muitos méritos com os pais. Era
considerado meio retardado. Um dia, foi comprar pão na padaria e não voltava
nunca mais. O pai foi atrás dele e o encontrou sentado, esperando. Na padaria
haviam informado que não havia mais pão e que a próxima fornada sairia dali a
duas horas. Ele ficou a esperar. Observava as pessoas e isto era bom. Ficar por
ali não o incomodava. Fazia-o pensar e ter ideias.
Disse que tem
medo das perguntas que as teses suscitam, pois não se lembra do que escreveu. É
como se os personagens o tomassem. Os personagens não o deixam dormir. Diz que
as pessoas querem ser estórias. Diz que não sabe de cor suas poesias.
E eu fico ali, a
pensar. O cara escreveu magníficos livros, de engajamento com seu país e sua
cultura, com linguagem única, que introduz novos conceitos. O cara tem frases
incríveis e bem humoradas como: “Reencornado é um homem que foi traído duas
vezes pela mesma mulher.” Tem uma linguagem poética: “A alma é um vento. Pode
cobrir mar e terra. Mas não é da terra nem do mar. A alma é um vento. E nós
somos um agitar de folha, nos braços da ventania.”
E diz que não
sabe? E não diz o que sabe? Que maravilha!
Eu quero é dar
testemunho do que vi. Eu vi um grande homem, que é um grande escritor, sem
empáfia, nem sopros de vaidade. Alguém que escuta as pessoas, que vê as
pessoas. Melhor: vê nas pessoas a pluralidade, os muitos mundos que as habitam,
a grandiosidade de ser. Ele é um contador de estórias, pois não é a
estória a guardiã da memória? E reconstruir um país não passa por honrar o
velho, unir passado e presente, fusão alquímica, união dos opostos? Mia Couto
parece-me é laçado pelas pessoas com suas estórias disponíveis desde sempre. E
é nelas, nas pessoas que tudo está. No inconsciente pessoal que se mistura ao
coletivo e narra um pouco de tudo. É ouvir, é ser viajante. É deixar-se laçar
pelo universal. Pela poesia e pelo amor que segundo ele: “estão acima de
qualquer discurso”.
Para terminar,
pouco me importa se o homem corresponde à obra, embora saiba que está além da
obra. Não foi minha cabeça que se envolveu com ele. Foi minha emoção que
liberou minh’alma, que se desprendeu de alfinetes qual borboleta escravizada e
voou livre, com todas as estórias que já contaram sobre mim e sobre os que me
antecederam.
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